Crítica | Tipos de Gentileza (Kinds of Kindness): aqui a gentileza gera estranheza

“Tipos de Gentileza (Kinds of Kindness)” é uma obra que desafia o espectador em múltiplos níveis, combinando elementos perturbadores e cômicos em três contos que, embora independentes, se entrelaçam de maneira sutil e provocativa.

Sob a direção de Yorgos Lanthimos, cineasta aclamado por suas obras intensas, o filme oferece uma experiência que leva o público a explorar emoções complexas e reflexões profundas, que talvez não tenham sido sentidas há muito tempo.

O diretor é conhecido por criar universos onde as convenções sociais são distorcidas até o absurdo, e mantém sua marca registrada em Kinds of Kindness.

Através de uma estética visual simples, mas eficaz, e de uma narrativa que combina o grotesco com o sublime, ele convida o público a questionar o que realmente significa ser gentil, ou o que é ser cruel, de uma maneira que poucos filmes conseguem.

A Morte de R.M.F

O primeiro conto segue a vida de um homem de negócios que, em sua busca desesperada por um sentido maior na vida, acaba se envolvendo em uma missão cruel.

Nele, somos primeiro apresentados a um homem de meia-idade, interpretado por Yorgos Stefanakos, que é recrutado para participar de um trabalho especial. Ao chegar a uma mansão imponente, ele é recebido por uma mulher enigmática e sedutora (Margaret Qualley) que transmite instruções através de telefonemas de um desconhecido. Seu objetivo, aparentemente simples, é se envolver em um acidente de carro planejado nos mínimos detalhes.

O protagonista, interpretado por Jesse Plemons, se vê preso em um ciclo de obediência extrema a seu chefe, vivido por Willem Dafoe. Yorgos Lanthimos faz deslizar o espectador a uma narrativa onde a vida do personagem principal é controlada em todos os aspectos, desde o que ele deve comer até quantas vezes deve ter relações com sua esposa. É a história de como a perda de autonomia pode levar a um vazio existencial.

Jesse Plemons em Kinds of Kindness - Divulgação: Searchlight Pictures
Jesse Plemons em Kinds of Kindness – Divulgação: Searchlight Pictures

Uma missão fracassada, onde o personagem não consegue causar um acidente de trânsito com a intensidade necessária para cumprir seu objetivo, simboliza a falência de um sistema onde o controle absoluto sobre a vida de uma pessoa resulta em uma perda total de propósito, mas vai de encontro a uma história que tenta justamente vender o contrário.

O protagonista, ao decidir abandonar sua missão, é “liberado” por seu chefe, mas essa liberdade vem acompanhada de um vazio ainda maior. A busca por um novo sentido se torna uma tortura, pois a autonomia recém-conquistada revela-se um fardo, e não uma libertação.

Em uma sociedade onde o controle pode ser comprado e vendido, o protagonista é levado a confrontar os limites de sua própria moralidade. A decisão de desistir da missão, mesmo sabendo que isso poderia resultar em sua liberdade, mas também em uma vida vazia e sem direção, coloca em evidência a luta interna entre a obediência cega e o desejo de autonomia.

R.M.F. Está Voando

O segundo conto mergulha profundamente no abismo da perda e da desconexão emocional, abordando o tema de maneira perturbadora e intrigante. A história acompanha Daniel (Jesse Plemons), um policial que lida com o desaparecimento de sua esposa em um naufrágio.

A trama revela não apenas a dor da perda, mas também a lenta e sutil transformação que essa ausência provoca em Daniel, afetando sua sanidade e suas relações pessoais. Enquanto ele tenta manter uma fachada de normalidade, seu comportamento cada vez mais errático começa a alarmar seus colegas e amigos próximos.

O casal de amigos, interpretado por Margaret Qualley e Mamoudou Athie, serve como um espelho das tentativas de Daniel de encontrar normalidade em meio ao caos emocional que ele enfrenta. Eles tentam retomar a presença na vida de Daniel com a intenção de ajudá-lo a se distrair da agonia do desaparecimento de sua esposa, oferecendo companhia e uma sensação de estabilidade. No entanto, à medida que a história avança, fica claro que sua proximidade com Daniel vai além de uma simples amizade, revelando uma dinâmica complexa e carnal que permeia suas interações.

Emma Stone em Kinds of Kindness - Divulgação: Searchlight Pictures
Emma Stone em Kinds of Kindness – Divulgação: Searchlight Pictures

Essa relação íntima entre os dois casais, que transcende a amizade convencional, adiciona uma camada de tensão e ambiguidade ao conto. A presença constante e o envolvimento físico sugerem uma dependência emocional e psicológica mútua, que se intensifica conforme Daniel se afunda cada vez mais em seu próprio desespero.

Quando sua esposa (interpretada por Emma Stone) é milagrosamente encontrada e resgatada de uma ilha deserta, o retorno deveria ser um alívio, mas o conto toma um rumo inesperado.

A mulher que retorna parece ser fisicamente a mesma, mas há algo inquietantemente diferente em seu comportamento, que deixa Daniel em um estado de constante desconfiança. Essa brincadeira com o horror psicológico conduz o público a um crescente desconforto enquanto Daniel testa os limites dessa nova realidade.

A atuação de Emma Stone é um dos pontos altos do filme. Ela transita entre a doçura e o desespero, criando uma personagem que é, ao mesmo tempo, familiar e estranha.

Spoiler a seguir:

A cena em que, em um ato de obediência cega, ela corta um de seus dedos e o cozinha para o marido, é um dos momentos mais impactantes do filme. Essa cena, grotesca e surreal, funciona como uma metáfora para o sacrifício e a perda de identidade dentro de um relacionamento abusivo ou disfuncional.

R.M.F. Está Voando explora de forma brilhante a ideia de que o desaparecimento não precisa ser físico para ser devastador. A esposa de Daniel pode ter voltado em corpo, mas sua essência, seu espírito, parece ter se perdido para sempre, deixando o protagonista à mercê de suas paranoias e inseguranças.

R.M.F. Come um Sanduíche

O terceiro e último conto leva o espectador em uma história que mistura religião, poder e controle de maneira inquietante. Aqui, Emma Stone retorna como Emily, uma mulher forte e determinada que, junto com seu parceiro (Jesse Plemons), busca alguém com a habilidade especial de ressuscitar os mortos.

A seita à qual eles pertencem é liderada por figuras enigmáticas, interpretadas por Willem Dafoe e Hong Chau, que mantêm um controle absoluto sobre seus seguidores, manipulando suas crenças e seus corpos.

Willem Dafoe em Kinds of Kindness - Divulgação: Searchlight Pictures
Willem Dafoe em Kinds of Kindness – Divulgação: Searchlight Pictures

Yorgos Lanthimos constrói este conto em torno da ideia de que a fé, quando mal direcionada, pode se tornar uma arma poderosa e desapegada até mesmo de seus fiéis. A seita, com sua estética de paz e amor, esconde uma realidade sombria, onde o controle é exercido através de rituais bizarros e provas de lealdade extremas.

A busca pelo “Messias” com o poder de reviver os mortos torna-se uma metáfora para o desejo humano de encontrar sentido em meio ao caos da vida. No entanto, essa busca é também uma armadilha, que leva os personagens a questionarem até onde estão dispostos a ir por suas crenças.

A água, elemento central neste conto, é usada como símbolo de vida e morte, de pureza e contaminação. A natureza da água é como algo essencial para a vida e que pode, ao mesmo tempo, ser a causa de morte e desespero.

À medida que a narrativa avança, o conto revela a complexidade da fé e o custo da devoção extrema. Emily se vê confrontada com uma revelação inquietante sobre a verdadeira identidade da jovem que acreditavam ser a messias, e a busca culmina em uma reviravolta irônica e frustrante que mastiga as expectativas do espectador.

“Tipos de Gentileza” é um filme que exige do espectador mais do que apenas atenção; exige reflexão e, em alguns casos, até mesmo introspecção. Lanthimos utiliza seu elenco de forma brilhante, extraindo performances que vão desde o cômico até o trágico, criando um mosaico de emoções que se complementam. A fotografia, embora aparentemente simples, é carregada de simbolismos, e a trilha sonora complementa cada cena com uma precisão quase cirúrgica.

Tipos de Gentileza (Kinds of Kindness) - Divulgação: Searchlight Pictures
Tipos de Gentileza (Kinds of Kindness) – Divulgação: Searchlight Pictures

Emma Stone, Jesse Plemons, Willem Dafoe, Margaret Qualley e os demais membros do elenco assumem diferentes papéis em cada história, o que permitiu ao diretor explorar a versatilidade desses atores enquanto eles transitam por personalidades e situações totalmente distintas.

A decisão de manter o mesmo elenco em múltiplos papéis também serve para reforçar os temas centrais do filme, como a identidade, a transformação e a repetição de padrões de comportamento.

Ao ver os mesmos rostos em histórias tão diferentes, o público é convidado a questionar até que ponto nossas circunstâncias externas moldam quem somos e como reagimos ao mundo ao nosso redor.

A trilha sonora é um presente na construção da atmosfera única do filme, amplificando o impacto emocional e psicológico de cada conto.

Composta por uma seleção de músicas que Sweet Dreams Are Made of This para Brand New Bitch, a trilha guia o espectador por uma montanha-russa de sentimentos, ora acentuando o desconforto e a tensão, ora oferecendo uma sensação momentânea de alívio.

As escolhas musicais feitas de Jerskin Fendrix não apenas complementam as cenas, mas também adicionam camadas de significado, sublinhando a ironia ou o absurdo das situações, ecoando em um tom cômico e perturbador que permeia o filme.

Este é um filme que, como o próprio título sugere, explora diferentes formas de “gentileza“, muitas vezes de maneiras que surpreendem e desconcertam.

A gentileza pode ser uma máscara para a crueldade, uma forma de controle ou até mesmo uma ilusão que nos conforta em tempos de incerteza. Fiel ao seu estilo, o diretor não oferece respostas fáceis, mas sim um convite para que cada espectador encontre seu próprio entendimento.

“Tipos de Gentileza” é uma obra complexa, envolvente e, acima de tudo, provocativa. É um filme que vai permanecer com você, fazendo ecoar suas questões muito tempo depois dos créditos finais. Para quem está disposto a mergulhar nas camadas mais sombrias da sua própria alma, fica o convite.

Tipos de Gentileza (Kinds of Kindness) estreia nos cinemas em 22 de agosto.

Esta crítica foi produzida a partir de uma cabine de imprensa a convite da Disney e Searchlight Pictures.

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Robson Netto

Robson é o criador do Que Tar. Nascido em Ponta Grossa, a verdadeira capital da Rússia Brasileira. Enquanto não for processado, vai tentar trazer muito conteúdo e informações cheias de humor.

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